Exclusão da tutela legal em razão de ideologia preconceituosa
Francisco Sannini, mestre em Direitos Difusos e Coletivos discorre sobre a questão
Publicado: 23/10/2023, 17:52
Foi aprovado na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados [1], o Projeto de Lei nº 580/2007, que proíbe o casamento e a união estável entre pessoas do mesmo sexo. A proposta ainda deverá passar por outras comissões antes de seguir para o Senado, mas, desde a sua gênese, vem gerando enorme repercussão, inclusive no meio jurídico.
O relator do PL na referida comissão, o deputado federal Pastor Eurico, destacou em seu parecer que a "relação homossexual não proporciona à sociedade a eficácia especial da procriação, que justifica a regulamentação na forma de casamento e a sua consequente proteção especial pelo Estado".
Feita esta contextualização sobre o tema e partindo da premissa de que o racismo se caracteriza, notadamente, por promover a exclusão de pessoas em razão de uma ideologia preconceituosa, neste estudo ousamos sustentar, para fins pedagógicos apenas, a existência do que chamamos de "racismo legislativo". Isso porque, não raro, o legislador deixa de conferir uma tutela legal adequada a grupos integrantes da sociedade por conta de um preconceito, promovendo, assim, uma espécie de exclusão jurídica daqueles que se encontram na mesma condição.
E nos parece ser exatamente este o caso do PL nº 580/07, que, ao que tudo indica, influenciado por dogmas religiosos, tem a pretensão de excluir as relações homoafetivas da tutela específica do casamento e da união estável. Note-se que no parecer do relator do projeto na comissão, fica escancarada a ideologia preconceituosa que o norteia, vinculando a tutela do Estado a relações interpessoais que possam gerar filhos biológicos.
Nesse cenário, como ficariam as relações heterossexuais albergadas pela proteção jurídica conferida pelo casamento, mas cujos integrantes não têm a intenção de "procriar"? E a hipótese ainda mais emblemática de um casal heterossexual estéril, ou seja, que não possa ter filhos?! Será que esta relação, ainda que entre um homem e uma mulher, "por não proporcionar à sociedade a eficácia especial da procriação" não mereceria a proteção do Estado por meio do instituto do casamento?!
Por obviedade, caros leitores, todas estas indagações são de caráter retórico. É preciso que se compreenda, de uma vez por todas, que institutos jurídicos não são propriedades de qualquer religião e a lei, ao menos em regra, deve ser marcada pela generalidade, o que significa que a norma se aplica a todos indistintamente!
O casamento, por exemplo, numa "sociedade patriarcal" tal qual preconizado pelo Código Civil de 1916, impunha uma estrutura familiar em que o homem tinha o comando e os demais membros lhe deviam obediência, inclusive a mulher, tratada como pessoa relativamente incapaz. Foi com a Constituição da República de 1988 que a família deixou de ser patriarcal, pois, pautando-se nos postulados da dignidade da pessoa humana e da igualdade, estabeleceu o mesmo tratamento entre os sexos dentro de uma sociedade conjugal.
Atento a realidade social, o legislador constituinte também não se esqueceu das "famílias monoparentais", compreendida como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (artigo 226, §4º, da CR). Posteriormente, coube ao Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF 132/RJ, destacar que a Constituição não interdita a formação de uma família por pessoas do mesmo sexo, conferindo tratamento igualitário entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos. Nos termos do voto do relator:
"Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo — data vênia de opinião divergente - é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade. Pena de se consagrar uma liberdade homoafetiva pela metade ou condenada a encontros tão ocasionais quanto clandestinos ou subterrâneos." (ADPF 132/RJ)
São, de fato, emblemáticas as palavras do eminente relator, ministro Ayres Britto, pois ilustram a importância de se conferir a todos o mesmo tratamento jurídico e a mesma proteção em seus relacionamentos afetivos, independentemente da orientação sexual, sob pena de condenar determinadas relações à clandestinidade, como se elas não existissem para o Estado, o que implica em uma escancarada inconstitucionalidade.
Sob outra perspectiva, também verificamos o "racismo legislativo" quando o Legislador, mesmo após a "advertência" do STF na ADO 26/DF, que deu interpretação conforme à Constituição para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a sua forma da manifestação, nos diversos tipos penais da Lei 7.716/89, até que sobrevenha lei autônoma editada pelo Congresso Nacional, se recusa a inserir expressamente no texto legal esta forma de racismo, o que, aliás, poderia ter sido feito por meio da recente Lei 14.532/2023, que trouxe a Injúria Racial para a lei de regência da matéria.
Outro exemplo de "racismo legislativo" nós encontramos na própria Lei 7.716/89, mais especificamente no seu artigo 20-C, que, aparentemente, tem a pretensão de excluir do âmbito protetivo da lei os atos racistas praticados por minorias contra integrantes de uma suposta maioria, senão, vejamos:
"Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência."
Como se pode perceber, a norma em questão parece encampar o entendimento de que não existe "racismo reverso", o que, conforme demonstramos em outro estudo [2], não encontra respaldo na Constituição e nem nos diplomas internacionais que tratam do tema e estabelecem que todo ser humano tem direito à igual proteção contra o racismo (Decreto nº 10.932/2022).
Por fim, entendemos que a Lei 14.532/2023, que, conforme já mencionado, alterou a Lei 7.716/89, para incluir a Injúria Racial no seu âmbito protetivo, também promoveu o "racismo legislativo" ao excluir a injúria religiosa do novo tipo penal do artigo 2º-A, sem qualquer justificativa fática ou jurídica para tanto, especialmente se considerarmos que o preconceito religioso foi a base para uma das maiores expressões do racismo da nossa história: o Holocausto.
Com informações: assessoria da imprensa.