Crônica dos Campos Gerais: A hora do Angelus | aRede
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Crônica dos Campos Gerais: A hora do Angelus

Texto de autoria de Ludo Santos, jornalista e bancário aposentado, natural de Ponta Grossa, residente em Curitiba, escrito no âmbito do projeto Crônicas dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais

Texto de autoria de Ludo Santos, jornalista e bancário aposentado, natural de Ponta Grossa
Texto de autoria de Ludo Santos, jornalista e bancário aposentado, natural de Ponta Grossa -

Da Redação

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Mudei para um antigo bairro curitibano onde ainda há apito de sorveteiro e de trem. Como o moleque do picolé ganha a vida à luz do dia, seus silvos não me incomodam nem um pouco. Com a passagem do trem é diferente: o apito noturno grave no cruzamento, o atrito nos trilhos, o bufar do motor da locomotiva, às vezes me despertam de sonhos, pesadelos, fugas.

Cada vez que acordo com a buzina disparada pelo maquinista, me assusto e sou levado a noites de minha infância vivida num bairro riscado por uma linha férrea, em Ponta Grossa. Naquelas noites, cheio de medo e de fantasmas, aos prantos procurava os braços de minha mãe que então me acalmava passando a mão nos meus cabelos, num carinho de lã, e cantarolava cantigas italianas que ajudavam a espantar os sons vindos dos dormentes.

Confesso que um repicar de sinos ao entardecer também me desconcerta. Traz à memória um crepúsculo longínquo no bairro de Olarias e a igrejinha de madeira donde soavam rígidas badaladas anunciando a hora do Angelus. Logo depois, de um velho rádio cresciam os primeiros acordes da sublime Ave Maria de Schubert e em seguida, diante de um quadro da Virgem com o bambino, ouvíamos num silêncio secular o locutor desfiar o belo Magnificat de Lucas. Uma melancolia baixava em nossos corações e então agradecíamos o pão de cada dia e orávamos pedindo as benções do Senhor. Havia dias que saíamos em procissão pelas ruas do bairro rezando, recitando cânticos e acendendo repetidas vezes as velas que o vento insistia em apagar durante o nosso périplo santo.

Todas essas lembranças são como as velas que carregávamos. O vento, o tempo, tentam apagar, mas vem uma mão, uma recordação de menino e acendem a vela, iluminam a memória e tudo fica escuro e nítido como naquelas noites.

Conheço a história de duas pessoas que pediram aos amigos que lhes tocassem Jesus Alegria dos Homens na hora da morte. Não sei se lhes fizeram a vontade. Rubem Braga sonhou com os sons dos carrilhões de um velho relógio de parede que marcou as horas da vida e morte de seus pais. De minha parte, um lento dobrar de sino anunciando a hora do Angelus, tendo a Ave Maria de Schubert como fundo musical, seria perfeito. E que no derradeiro instante eu sentisse as sagradas mãos de minha mãe me acariciando os cabelos e ouvisse sua voz num último acalanto. E então poderia ecoar qualquer barulho de trem, apito de locomotiva, que pela primeira vez eu não teria medo. E assim, depois de muitos anos, me sentiria grande, tamanho de menino e, finalmente, fecharia os olhos e adormeceria feliz para sempre.

Texto de autoria de Ludo Santos, jornalista e bancário aposentado, natural de Ponta Grossa, residente em Curitiba, escrito no âmbito do projeto Crônicas dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais (https://cronicascamposgerais.blogspot.com/).

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