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(In)constitucionalidade da proibição do casamento homoafetivo

Decisão com efeito vinculante do Supremo Tribunal Federal em 2011, voltou a gerar controvérsias

Algo que se acreditava resolvido por decisão com efeito vinculante do Supremo Tribunal Federal em 2011, voltou a gerar controvérsias
Algo que se acreditava resolvido por decisão com efeito vinculante do Supremo Tribunal Federal em 2011, voltou a gerar controvérsias -

Da Redação

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Desde os anos 1990 que há no âmbito do Congresso projetos de regulamentação de casamentos/uniões civis de pessoas do mesmo gênero sem que nenhum tenha sido aprovado até o momento. Em 2011, o STF, por unanimidade, em decisão conjunta das ADI 4277 e ADPF 132, estabeleceu que as uniões estáveis previstas no artigo 226, §3º, da Constituição também se referem às uniões entre pessoas do mesmo gênero, nos mesmos termos, devendo a legislação facilitar sua conversão em casamento, o que ensejou a posteriori a Resolução 175/2013 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) regulamentando a questão, também ante a ausência de qualquer regulamentação por parte do parlamento brasileiro. Desde 2013, portanto, a questão se encontra resolvida do ponto de vista da normatização, garantindo aos casais homoafetivos isonomia de tratamento com os casais heteroafetivos.

Eis que a discussão sobre projetos de lei que visam regulamentar as ditas uniões civis homoafetivas ressurgiu na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados com um projeto do tipo (PL 580/2007) apresentado em 2007 pelo já falecido deputado Clodovil Hernandes (PTC-SP) que tinha à época o objetivo de regulamentar essas uniões e que teve apensados a ele outros oito PLs.

O relator do PL nessa comissão, deputado Pastor Eurico (PL-PE), apresentou parecer pela rejeição de quase todos os referidos PLs, incluindo o original, e pela aprovação de um dos apensados, o PL 5.167/2009, que acrescenta ao artigo 1.521 do Código Civil um parágrafo único com o seguinte texto: "Nos termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar". 

Como seria de esperar, essa posição do relator gerou reações na sessão do dia 5/9/2023 na qual o parecer foi apresentado, com discussões acaloradas e um pedido conjunto de vistas do deputado pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) e das deputadas Laura Carneiro (PSD-RJ), Erika Kokay (PT-DF) e Daiana Santos (PCdoB-RS).

Ante o fato e suas controvérsias, indaga-se se o Congresso pode alterar entendimento consolidado do STF em ações de controle abstrato de constitucionalidade com efeito vinculante e se há problemas de constitucionalidade no conteúdo em relação ao PL cuja aprovação foi defendida pelo relator.

A primeira indagação de natureza técnico-formal, portanto, seria: se aprovada, essa lei poderia revisar jurisprudência consolidada do STF?

É cediço que uma decisão de nossa Suprema Corte em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (e de outras ações de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade) têm eficácia erga omnes e efeito vinculante (CR, artigo 102, §2º e Lei 9868/1999, artigo 28, parágrafo único, e em relação à ADPF, Lei 9.882/1999, artigo 10, §3º), o que significa, dentre outras coisas afirmar que seu conteúdo decisório vincula os poderes executivo e judiciário em todos os níveis da Federação.

Contudo, o poder legislativo em sua função típica de legislar não está vinculado a essa decisão, de modo que é possível o Congresso editar lei ou emenda à Constituição de conteúdo anteriormente declarado inconstitucional pelo STF, o que pode forçar uma reapreciação do referido conteúdo em sede de nova ação do tipo, seja para reafirmar o entendimento anterior consolidado, seja para revertê-lo, estabelecendo nova interpretação constitucional em relação à nova legislação promulgada.

Para além dos dispositivos normativos não incluírem o poder legislativo como ente vinculado aos efeitos da decisão no sentido de uma nova produção legislativa, também o próprio Supremo reconhece essa não vinculação em ações como a ADI 5.105 (relator ministro Luiz Fux, DJE 13/10/2015).

Nesta ADI, o STF entendeu que, embora a Constituição tenha dado ao tribunal o papel de seu guardião, não estabeleceu um sistema de supremacia judicial definitiva, de modo que seus pronunciamentos devem ser vistos como uma espécie de "última palavra provisória", com o efeito vinculante da forma descrita e finalizando uma etapa deliberativa na questão, mas sem, nos termos da decisão, "fossilizar o conteúdo constitucional".

Nesse sentido, seria possível que o Congresso revisasse legislativamente jurisprudência firmada da Corte por via de emendas constitucionais ou de leis complementares e ordinárias, circunstâncias que exigiriam do STF providências de natureza distinta, pois no caso do controle de constitucionalidade das emendas, ele só poderia ocorrer em virtude de violação do artigo 60 da Lei Maior.

Por outro lado, no caso das leis, estabeleceu a decisão que estas nascem com uma presunção juris tantum de inconstitucionalidade, de modo que caberia ao legislador o ônus de demonstrar argumentativamente que é necessária a revisão do precedente ou que as premissas fáticas e/ou axiológicas sob as quais se fundou a deliberação da Corte não mais subsistem. Ademais, como os poderes executivo e judiciário permaneceriam vinculados ao que já decidira anteriormente o STF, a lei não poderia ser executada até que este Tribunal viesse em nova ação de inconstitucionalidade reverter seu precedente, reconhecendo a necessidade de sua revisão.

No Brasil, não há mecanismos constitucionais como a cláusula "não obstante" (notwithstanding clause) prevista na seção 33 da Constituição do Canadá, que permite ao Parlamento canadense reeditar a lei declarada inconstitucional pela Suprema Corte por um prazo de cinco anos, findo o qual a composição do legislativo daquele país já terá sido modificada por novas eleições gerais e o tema da lei terá que ser rediscutido, fomentando um diálogo institucional a respeito dos assuntos e teses envolvidas e a possibilidade de modificações tanto jurisprudenciais como legislativas.

Em 2011, chegou a ser proposta no Congresso a PEC 33, que, supostamente inspirada na Carta canadense de 1982 e em autores como Jeremy Waldron e Mark Tushnet, alterava várias disposições constitucionais sobre o exercício da jurisdição constitucional, como por exemplo a elevação do quórum das declarações de inconstitucionalidade para 4/5 dos votos dos ministros do STF e a condição de eficácia das súmulas vinculantes ser a aprovação do próprio Congresso. Mas tal Proposta terminou por ser arquivada, de modo que não houve alteração nas normas que regem as relações entre o Parlamento e a Suprema Corte.

Esse debate é relevante para analisar se o casamento homoafetivo poderia ser proibido por lei contrariando o entendimento do STF na decisão da ADI 4.277/ADPF 132, considerando que, para além da tentativa de supressão da dita união como entidade familiar, há no Parecer do Relator pelo menos duas passagens que fazem referência à necessidade de um enfrentamento do Congresso a uma suposta usurpação de suas funções legislativas pelo STF. São elas:

"Percebe-se, por conseguinte, que, mais uma vez, a Corte Constitucional brasileira usurpou a competência do Congresso Nacional, exercendo atividade legiferante incompatível com suas funções típicas. A decisão pautou-se em propósitos ideológicos, o que distorce a mens legislatoris e a vontade do povo brasileiro, que somente se manifesta através de seus representantes regularmente eleitos.
(...)
De outro norte, com fins de bloquear o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal, que, em que pese devesse ser o guardião da Constituição, a usurpou na decisão que permitiu a união estável homoafetiva, faz-se necessário aprovar o PL nº 5.167/2009, que estabelece que nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar, não só por representar a maioria dos brasileiros, mas por retomar o debate ao ponto inicial, de modo que qualquer mudança quanto ao tema seja submetido à vontade legislativa, o único a quem incumbe editar e modificar leis."

No sentido técnico-formal, portanto, a resposta à indagação feita sobre se uma eventual lei poderia revisar jurisprudência consolidada do STF é afirmativa. A princípio, seria possível que esse PL sob esse aspecto estipulasse entendimento diverso do da Suprema Corte para a questão.

Entretanto, seria uma lei com presunção juris tantum de inconstitucionalidade, ante o decidido na ADI 5.105, de modo que seu efeito prático em um primeiro momento seria nulo, já que os poderes executivo e judiciário continuariam vinculados à decisão do STF de 2011 sobre a questão até que o próprio tribunal analisasse a questão em novo processo de controle de constitucionalidade sobre a lei eventualmente aprovada e a declarasse constitucional, revisando sua anterior jurisprudência pacificada.

A segunda e última indagação, para os limites destas reflexões seria: há violações à Constituição no conteúdo do PL que justifiquem sua invalidação por decisão em sede de controle de constitucionalidade?

Analisemos a questão a partir do próprio Relatório apresentado. Ao defender a proibição do casamento homoafetivo, argumenta o relator em seu voto que inexiste na Constituição previsão normativa que autorize o casamento ou a união estável entre pessoas do mesmo gênero, sendo sempre expressa a respeito a referência a homem e mulher.

Destaca o artigo 226 da Lei Maior, faz referência à concepção de que o ponto de partida do casamento seria a procriação e que se ocorre entre pessoas do mesmo sexo seria contrário à "verdade do ser humano", ao direito natural e à cultura do povo que seria contrária a isso, justificando que o Brasil, mesmo sendo um Estado laico, é uma nação cristã.

À luz da Constituição esses argumentos não se sustentam. A previsão literal de união estável como união entre homem e mulher não exclui outras formas de união que contemplem o exercício igualitário de direitos, já que o artigo 226 não pode ser interpretado isoladamente, desconsiderando a unidade da Constituição. Desde a sua promulgação, a Carta Magna assevera no seu artigo 5º, §2º, que os direitos e garantias nela previstos literalmente não excluem outros decorrentes dos tratados que o Brasil faça parte e do regime e princípios constitucionais.

Nessa perspectiva, o STF já analisou no julgamento da ADI 4.277/ADPF 132 argumentos praticamente idênticos, rechaçando-os e de modo assertivo destacando que a orientação sexual é algo que diz respeito à individualidade e que não seria concebível um "direito" de casais heteroafetivos a que o direito de casais homoafetivos não seja reconhecido.

Na própria ementa do Acórdão, já se ressalta que "A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice".

Sobre a questão da família enquanto entidade reconhecida pelo direito, o ministro Ayres Britto (relator) em seu voto, assente que "sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo 'família' nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser".

Poder-se-ia indagar se de 2011 para cá houve alguma mudança social relevante que justificasse a revisão do precedente, pois que jurisprudência da Suprema Corte não é imutável. Penso que ocorreram mudanças, mas no sentido de confirmação e reforço daquele conteúdo. Vejamos.

Em obra doutrinária acerca da presença do debate jurídico sobre proibição de discriminação por orientação sexual no direito internacional dos direitos humanos, Alexandre Bahia e Rainer Bonfim destacam a evolução de entendimento confirmatório daquele esposado na decisão do STF no plano internacional. Há no referido trabalho referência a decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos de 2012, bem como a outros precedentes, a Resoluções da OEA e principalmente à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em especial os Casos Atala Riffo y Niñas vs. Chile (2012), Duque vs. Colômbia (2016) — este o primeiro caso de decisão da Corte acerca de direitos de casais homoafetivos — e Flor Freire vs. Equador (2016). Além disso, veio em 2017 a paradigmática decisão na Opinião Consultiva 24, na qual se coloca de modo claro e objetivo o reconhecimento do casamento homoafetivo pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Em adendo, nos últimos anos tem se desenvolvido mais intensamente aqui no Brasil o direito antidiscriminatório como um sub-ramo do direito constitucional, com construções teóricas oriundas de especialistas que, ao mesmo tempo que reconhecem avanços, demonstram inquietações quanto à ineficácia de parte significativa de direitos fundamentais de segmentos vulnerabilizados da população em razão de fatores de discriminação pejorativa, como raça, etnia, gênero (incluída aqui a identidade de gênero) e por óbvio, a questão da orientação sexual não poderia estar de fora de seu campo de estudos. E, embora divirjam entre si em termos de métodos, conceitos e caminhos, nenhuma dessas pesquisas e estudos apontam para uma reversão conteudística do precedente do STF que reconhece a legitimidade das uniões homoafetivas.

Em meu entendimento, o PL 5.167/2009 é de flagrante inconstitucionalidade. Além do que já foi dito, vê-se que em diversos dispositivos a Lei Maior aponta para o combate ao preconceito e à discriminação e a promoção do bem geral, seja quando estipula objetivos fundamentais para o Estado brasileiro (artigo 3º, IV), seja prevendo direitos e garantias fundamentais (artigo 5º, I e LXXVI), seja até mesmo obrigando o legislador a aprovar leis que penalizem a discriminação e o preconceito (artigo 5º, XLI e XLII).

Nada subsiste na Constituição que institua, ainda que indiretamente, uma espécie de "direito ao preconceito" ou "direito a discriminar" e isso inclui por óbvio a proibição da discriminação por orientação sexual que envolve essa proposta legislativa que almeja proibir o casamento homoafetivo. Uma leitura hermenêutica de natureza sistêmica é suficiente para perceber que a Carta Magna não alberga normas como a proposta no PL.

Entendo, aliás, que tal vedação não pode ser estabelecida nem mesmo por emenda à Constituição, pois direitos e garantias individuais não podem ser abolidos por elas (CR, artigo 60, §4º, IV) e na perspectiva do precedente, as uniões e casamentos homoafetivos se incluem dentre direitos fundamentais dessa natureza, sendo, portanto, cláusulas pétreas.

Aparentemente, a ressurreição desse projeto se articula com o aumento sistemático dos ataques no Brasil e no mundo aos direitos da comunidade LGBTI+ a partir da ascensão de ideias políticas extremistas. Em Uganda, EUA, Itália, Hungria, Polônia, Rússia e muitos outros locais, proliferam projetos de legislação para restrição desses direitos. Aqui no Brasil, levantamento da Agência Diadorim mostra que em agosto de 2022, deputados estaduais de todo o Brasil tinham apresentado ao menos 122 projetos de lei contrários aos direitos LGBTI+, sendo 59 deles almejando a proibição da linguagem neutra, 28 versando sobre uso de banheiros por gênero, 19 contrários a publicidade que promovam a diversidade LGBTI+ e 16 proibindo a participação de atletas trans nos esportes, os 4 temas mais recorrentes segundo esse mapeamento.

Dados como esses demonstram a fragilidade dos direitos LGBTI+, que chega a ser superior à dos direitos das mulheres e da população negra que, ao menos possuem alguma legislação protetiva, ao passo que o Legislativo não somente não protege os direitos da comunidade LGBTI+, como sistematicamente os tem atacado.

Espero que o PL 5.167/2009 possa ser rejeitado já na Comissão referida, mas ainda que logre aprovação, não faltam, como visto, mecanismos jurídicos para demonstrar sua inconsistência e invalidá-lo, evitando que ele venha a vulnerabilizar ainda mais um segmento da sociedade já tão vulnerável.

Com informações: Assessoria da imprensa. 

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