Coluna MSN: Um Gosto Augusto
“Quando pessoas geniais se encontram, o mundo se recria”
Publicado: 30/01/2024, 17:29
O melhor volume de poesia traduzida do ano passado saiu por um selo artesanal, Galileu Edições, de Jardel Dias Cavalcanti, poeta que imprime plaquetes para nichos de leitores. Jardel entra na categoria dos editores com alma. As despesas são pagas com o salário dele – é professor na Universidade Estadual de Londrina – e as tiragens são na casa de poucas dezenas.
Este livro, por exemplo, teve uma edição inicial de 30 exemplares – tal como consta no colofão. Quando há uma retração da rede de livrarias físicas, quando as editoras precisam de grandes vendagens para manter suas estruturas, quando a tradução de best-seller entope as estantes do leitor desavisado, um editor independente mantém circulando algo maior.
Qual é o livro tão importante e com tão poucos leitores em potencial? “Emily mais”, traduções de Emily Dickinson, que reencarna em português pela magia vanguardista de Augusto de Campos (1931), nosso poeta contemporâneo de maior projeção internacional, mestre absoluto da experimentação.
No prefácio em forma de poema, Augusto menciona a existência de uma Emily múltipla por meio do neologismo sintetizador “milemilies”. Nesta palavra está cifrada a condição inesgotável de todo grande artista, que, em outra língua, só pode ser recriado, nunca traduzido. A seleção de 32 textos revela metonimicamente a poeta, que chega até nós por meio da valorização da invenção. Augusto não busca transportar o sentido do inglês para o português, mas fazer com que Emily renasça aqui, no ano de 2023. Há elementos melódicos, conquistas atuais da linguagem, dados da cultura brasileira e um desejo de síntese que iluminam esses poemas, como nos versos em que ela pede ao Senhor: “Qualquer que seja o meu Valor, / Continue-me assim”.
Como divido minha biblioteca em dois hemisférios, literatura de língua portuguesa e literatura dos demais idiomas, onde guardarei esta pequena joia? Não penso duas vezes, ao lado dos livros de Augusto, e não entre os de Emily Dickinson.
O autor é escritor e reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa. No Instagram: sanchesnetomiguel; no Facebook (clique aqui) e no Twitter: @miguelsanchesnt.